Conheça um pouco sobre o Guia Referencial para Identificação, Quantificação e Mitigação de Superfaturamento em Contratos de Bens e Serviços (CGU)
A Controladoria-Geral da União (CGU) publicou em abril de 2025 um Guia Referencial essencial para auditores e gestores públicos, focado na identificação, quantificação e mitigação de superfaturamento em contratos de bens e serviços. Este documento serve como uma ferramenta estratégica para fortalecer a integridade na administração pública, oferecendo métodos claros e orientações práticas baseadas na legislação atual, como a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos), e na jurisprudência consolidada dos órgãos de controle. O objetivo deste artigo é apresentar um resumo conciso das informações mais relevantes contidas no guia, abordando os conceitos fundamentais, as principais tipologias de superfaturamento e as diretrizes para sua apuração.
Conceitos Fundamentais: Sobrepreço vs. Superfaturamento
O guia estabelece distinções cruciais entre sobrepreço e superfaturamento, conceitos vitais para a correta apuração de irregularidades e a proteção do erário.
Sobrepreço: Conforme a Lei nº 14.133/2021, o sobrepreço ocorre quando o preço orçado para licitação ou efetivamente contratado é expressivamente superior aos preços referenciais de mercado. Isso pode aplicar-se a um item específico (em contratações por preços unitários) ou ao valor global do objeto (em contratações por tarefa, empreitada global, etc.). O Tribunal de Contas da União (TCU) reforça que o sobrepreço é a cotação de um bem ou serviço acima do valor de mercado. É calculado pela diferença entre o preço estimado/contratado e o preço referencial de mercado (S = (E ou C) – M). É importante notar que a simples existência de sobrepreço no orçamento ou na proposta não configura, por si só, dano ao erário.
Superfaturamento: Este sim representa o dano efetivo ao patrimônio da Administração. A Lei nº 14.133/2021 o caracteriza por diversas situações, incluindo: medição de quantidades superiores às fornecidas/executadas; deficiência na execução que diminua qualidade, vida útil ou segurança (especialmente em obras); alterações orçamentárias que causem desequilíbrio em favor do contratado; e outras alterações financeiras indevidas (pagamentos antecipados, distorção de cronograma, prorrogação injustificada, reajuste irregular). O TCU complementa, definindo-o como o pagamento por bens/serviços a preços manifestamente superiores aos de mercado ou incompatíveis com os fixados oficialmente, seja por preços unitários excessivos, medição incorreta ou má qualidade.
Dano ao Erário vs. Débito: O guia também diferencia dano ao erário (o prejuízo efetivo aos cofres públicos) de débito (a obrigação financeira de ressarcir esse prejuízo, formalmente estabelecida após apuração e responsabilização, geralmente por decisão de um órgão de controle como o TCU).
Orientações dos Órgãos de Controle
O guia compila importantes entendimentos do TCU e da CGU:
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Tolerância Zero: Não existe percentual aceitável ou tolerável para sobrepreço em contratações públicas.
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Parâmetros de Cálculo: O preço de mercado é o parâmetro fundamental. Podem ser usados como referência: valores de licitações e contratos similares de outros órgãos (prática consagrada na Lei 14.133/2021), Banco de Preços em Saúde (para medicamentos), notas fiscais de fornecedores (em último caso, quando outros referenciais faltam), mas não os preços estimados na fase interna da licitação ou propostas desclassificadas. Os referenciais devem ser da data mais próxima possível à base do contrato.
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Compensação: A compensação entre itens com sobrepreço e itens com subpreço (abaixo do mercado) só é admitida, em regra, para obras e serviços, não se aplicando a compras de bens, onde a análise deve ser feita por item.
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Conluio e Responsabilidade: Em caso de conluio, o débito recai sobre o vencedor, mas outros participantes podem ser punidos. Licitantes que se aproveitam de orçamentos superestimados podem ser responsabilizados solidariamente.
Principais Tipos de Superfaturamento em Bens e Serviços
O guia detalha as formas mais comuns como o superfaturamento se manifesta em contratos de bens e serviços, ressaltando que a lista não é exaustiva:
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Superfaturamento por Quantidade: Ocorre quando a Administração paga por quantidades de bens ou serviços superiores às efetivamente entregues ou executadas. Exige verificação rigorosa das medições e entregas.
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Superfaturamento por Qualidade: Caracteriza-se pelo pagamento por bens ou serviços que não atendem às especificações de qualidade definidas no contrato, embora o preço pago corresponda ao item de qualidade superior. O bem/serviço entregue tem valor de mercado inferior ao pago.
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Superfaturamento por Preço Excessivo: É a forma mais direta, onde o preço pago por um bem ou serviço é comprovadamente superior ao seu valor de mercado na época da contratação ou do pagamento.
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Superfaturamento por Pagamentos Antecipados: Ocorre quando pagamentos são realizados antes da correspondente contraprestação (entrega do bem ou execução do serviço), sem as devidas garantias ou previsão contratual/legal, gerando custos financeiros indevidos para a Administração.
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Superfaturamento por Reajuste Irregular de Preços: Acontece quando são aplicados reajustes de preços em desacordo com os índices, a periodicidade ou as condições estabelecidas no contrato ou na legislação, resultando em pagamentos maiores que os devidos.
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Superfaturamento por Prorrogação Injustificada de Contratos: Ocorre quando um contrato é prorrogado sem justificativa técnica ou legal adequada, mantendo-se condições de preço que já não são vantajosas para a Administração (tornaram-se superiores aos de mercado) ou gerando custos adicionais desnecessários.
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Superfaturamento por “Jogo de Planilha” ou “Química”: Refere-se a manipulações nos preços unitários durante a execução contratual, geralmente via aditivos, onde itens com preços unitários inflados têm suas quantidades aumentadas, enquanto itens com preços unitários subavaliados têm suas quantidades diminuídas, mantendo ou até reduzindo o valor global do contrato, mas gerando um pagamento final superior ao que seria devido pelos serviços/bens efetivamente realizados/entregues a preços de mercado.
Metodologia de Cálculo do Superfaturamento
O guia detalha metodologias específicas para quantificar o dano ao erário em cada tipo de superfaturamento. A abordagem geral envolve:
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Procedimentos Iniciais: Coleta e análise de informações essenciais como especificação do objeto, quantidades, localização, datas, logística e, crucialmente, a coleta de preços referenciais de mercado.
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Coleta de Preços: Utilização de fontes diversas e confiáveis (licitações e contratos similares, sistemas de referência como SINAPI/SICRO para obras, Banco de Preços em Saúde, notas fiscais, etc.), sempre buscando preços contemporâneos à execução contratual.
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Tratamento dos Dados: Análise estatística dos preços coletados para definir um preço referencial de mercado robusto (média, mediana, menor preço, etc., dependendo do caso e da amostra).
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Cálculo Específico: Aplicação de fórmulas adequadas a cada tipologia. Por exemplo:
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Quantidade: Diferença entre a quantidade paga e a quantidade efetivamente recebida/executada, multiplicada pelo preço unitário contratual.
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Qualidade: Diferença entre o preço de mercado do bem/serviço especificado e o preço de mercado do bem/serviço efetivamente entregue, multiplicada pela quantidade.
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Preços Excessivos: Diferença entre o preço unitário pago e o preço unitário de mercado, multiplicada pela quantidade.
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O guia também aborda tópicos específicos como medicamentos, transporte escolar e combustíveis, detalhando particularidades na apuração do superfaturamento nesses setores.
Responsabilização Decorrente do Superfaturamento
A identificação de superfaturamento acarreta a necessidade de apurar a responsabilidade dos envolvidos, tanto agentes públicos quanto pessoas jurídicas contratadas.
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Agentes Públicos: A responsabilidade pode recair sobre diversos atores, como o fiscal do contrato (por atestar medições incorretas ou recebimento de bens/serviços inadequados), o ordenador de despesas (por autorizar pagamentos indevidos), superiores hierárquicos, orçamentistas e até a alta administração, dependendo do nível de envolvimento e omissão. A análise da conduta (dolo ou culpa grave) é fundamental.
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Pessoa Jurídica: A empresa contratada responde pelo dano causado, estando sujeita ao ressarcimento do valor superfaturado e a sanções administrativas (multa, impedimento de licitar, declaração de inidoneidade) e judiciais, inclusive no âmbito da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013).
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Restituição de Lucros Ilegítimos (Disgorgement): O guia menciona a possibilidade de buscar não apenas o ressarcimento do dano, mas também a devolução dos lucros obtidos indevidamente pela contratada.
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Evidências: Destaca-se a importância da coleta e preservação de evidências robustas para comprovar a irregularidade e subsidiar os processos de responsabilização.
Conclusão
O Guia Referencial da CGU é uma ferramenta indispensável para o aprimoramento do controle dos gastos públicos no Brasil. Ao fornecer definições claras, tipologias detalhadas, metodologias de cálculo e orientações sobre responsabilização, ele capacita os agentes públicos a identificar, quantificar e mitigar o superfaturamento de forma mais eficaz. A aplicação consistente dessas diretrizes é crucial para garantir a economicidade, a eficiência e a integridade nas contratações públicas, assegurando que os recursos da sociedade sejam utilizados em seu real benefício.